sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

"Delícias" de Carlos Carvalhas

Impossível resistir a este texto de Carlos Carvalhas

" Ouvir ou ler um Rodrigues dos Santos, um Miguel Sousa Tavares e tantos outros sobre o Défice Estrutural, de que não fazem a mínima ideia de como se calcula, do que significa, nem do seu valor para avaliar a justeza de uma politica é uma delícia.
São categóricos. A ignorância é sempre atrevida e ainda mais quando estamos perante comentadores sobranceiros com desmesurado ego e arraigados preconceitos de classe.
Durante muito tempo estivemos sozinhos a afirmar que os critérios de Maastricht, não tinham qualquer valor cientifico, até ao dia em que um Comissario europeu afirmou claramente que os critérios de Maastricht eram "estúpidos". Hoje sabemos melhor como foram calculados e impostos pela Alemanha que não era a da Srª Merkel.
Pode ser que ainda se venha a verificar com o dito défice estrutural o que sucedeu com os critérios de Maastricht e então teremos os mesmos comentadores a fazerem coro com os que sempre afirmaram que tal défice é de calculo difícil, subjectivo logo conferindo poderes discricionário a quem o avalia em Bruxelas e podendo ser objectivamente um travão ao crescimento económico.
E nem nos estamos a referir ao défice virtuoso de Miguel Cadilhe ...

Outras delicias são as que se referem à classe média e à austeridade.
Com a mesma ligeireza dizem uns que afinal a carga fiscal do novo Orçamento sobrecarrega a classe média. A abstracção "classe média" mete no mesmo saco sujeitos com rendimentos muito diferentes, mais acertado seria falar em camadas médias e é uma evidencia que este Orçamento, embora de forma imperfeita, desagrava fiscalmente a maioria das camadas médias.
O mesmo direi daqueles que afirmam que a austeridade se mantém.
As politicas do anterior governo não foram politicas de austeridade, mas sim politicas de concentração de riqueza, como sempre afirmamos e os dados sobre a distribuição do Rendimento Nacional o confirmam.

No Expresso, o jornalista Santos Guerreiro, que não confundo com outros do mesmo jornal cujo ego e atrevimento também estão na razão directa da santa ignorância, afirmou este fim de semana: "Os Orçamentos do PSD/CDS quase não tinham medidas desfavoráveis às empresas, este quase não tem medidas favoráveis, a austeridade recaía sobre o Estado, agora transfere o peso para os privados, o outro resignava-se ao empobrecimento, este revolta-se mas ilogicamente.
Não Pedro Santos Guerreiro, deixe-se de abstracções e vá ao concreto.
A dita austeridade não recaía sobre o Estado mas sobre os contribuintes, sobre os reformados, sobre os utentes do Serviço Nacional de Saúde, sobre a Escola Publica, alunos e professores, sobre os trabalhadores, sobre o património publico, edifícios, pontes, escolas, hospitais que viram os investimentos de conservação adiados e que agora se pagam com "língua de palmo". Agora a dita austeridade, no essencial também não recai sobre os privados mas sobre alguns privados, os que mais têm lucrado com a crise e com as medidas ditas de austeridade mas na realidade de concentração de riqueza.
Também não é verdade que o anterior governo se resignava ao empobrecimento. Não. O anterior governo promoveu-a porque esteve ao serviço dos grandes interesses e como a "manta era curta"... Quem tem estado a pagar o desendividamento e a capitalização da banca e a divida contraída para esse fim ? Esta de que o anterior governo se resignou, coitado, ao empobrecimento não "lembra ao Diabo" ... já se esqueceram da carta de demissão de Gaspar ...

Seria este o Orçamento desejável ? Não. Este é um Orçamento contraditório e que fica aquém de era possível, mesmo na lógica da UE. Na correcção da distribuição do Rendimento Nacional com impulso no aumento da produção e da produtividade  sem atingir o défice podia-se e devia-se ter ido mais longe. Um exemplo: podia-se aumentar 50%, 60% as ajudas aos pequenos agricultores cortando um pouco, repito, um pouco nos fartos subsídios dados aos grandes, podia-se fazer pagar de forma indirecta às gasolineiras mais de metade da subida e estabelecer preços especiais para a industria e para os transportadores em fretes de exportação sem burocracias ...
No entanto é para nós uma evidencia que com este Tratado Orçamental. com esta divida, com o Euro e com esta correlação de forças ao nível da UE a colonização do país vai continuar.

A esta conclusão irão chegar cada vez mais portugueses e agentes políticos, designadamente dentro do PS e não só. Quantos mais e mais rapidamente melhor para o povo e para o país."

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Pacheco Pereira, a quadratura do círculo de António Costa, e aquilo que importa fazer

Por estes dias, Pacheco Pereira está a ser um dos nossos mais lúcidos comentadores políticos. Não obstante o que me possa separar de alguns dos seus posicionamentos ideológicos, o facto é que não consigo deixar de subscrever o essencial das críticas e das advertências que ele tem feito relativamente ao governo de António Costa e aos partidos que o apoiam. Como na crónica que saiu na edição de hoje do «Público». Na óptica de Pacheco Pereira, António Costa está a viver uma experiência em tudo idêntica à do Syriza na Grécia, padecendo da mesma contradição de fundo: querer uma política anti-austeritária e, ao mesmo tempo, manter um compromisso integral com o Tratado Orçamental e com o colete de forças inerente às regras da moeda única. Ainda por cima tendo de se confrontar com uma Comissão Europeia inteiramente dominada por uma aliança entre a direita neoliberal e uma social-democracia em colapso ideológico, ambas alinhadas com o género de ideias postas em prática pelo governo do PSD-CDS e que, por isso mesmo, tudo farão para minar qualquer política empenhada em "virar a página da austeridade" e em mostrar que, mesmo dentro do respeito pelas normas comunitárias, é possível uma alternativa, por tímida que seja, à tese do "não há alternativa".  
A verdade é que está tudo montado para que o governo de António Costa falhe clamorosamente e abra assim o retorno da direita ao poder, essa mesma direita com que os burocratas de Bruxelas se identificam à maneira de membros de um mesmo clube. Falta, contudo, a Pacheco Pereira ir até ao fim dos seus argumentos. Se, como ele tem dito noutras ocasiões, as actuais regras da União Europeia e da Zona Euro distorcem as democracias nacionais ao imporem um único modelo de governação com uma só política económico-financeira, e se existe um notório défice de soberania nacional, então o corolário é que essa distorção e esse défice apenas poderão ser superados no quadro de uma ruptura com a moeda única e, possivelmente, com a própria União Europeia. Mas Pacheco Pereira não ousa ir tão longe.
Aos que se atrevem a defender uma tal solução, aos que ousam verbalizar aquilo que nem os Pachecos Pereiras admitem, cabe, contudo, um dever maior: o de pensar e expor publicamente, em detalhe, todas as implicações, todos os ganhos - mas também todos os riscos - que um corte com o euro (e, eventualmente, com a UE) acarretariam para um país como Portugal. Esse trabalho está ainda por fazer, mesmo que tenha sido esboçado no livro que Francisco Louçã e Ferreira do Amaral escreveram em conjunto - livro que, aliás, parte do pressuposto demasiado optimista de que a referida ruptura poderia ser negociada com os poderes de Bruxelas e que, portanto, não seria instaurada de forma unilateral. No momento actual, parece que a ecologia política em que nos movemos torna impensável semelhante saída. Mas se, como infelizmente tudo indica, vamos ter uma nova crise económica global a bater-nos à porta, podemos estar certos de que o abandono do euro vai regressar à agenda das alternativas. E urge estarmos preparados para reagir ao que será - não tenhamos dúvidas - um reforço do ataque aos direitos sociais de quem trabalha se um tal cenário se vier a concretizar.   

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Tradução de um excerto do livro de Philip Roderick, “The Eurozone: A History of a Strange Collective Delusion”, editado pela New Verso em 2057

«Entre 2008 e 2017, a Europa tornara-se um continente bizarro, que hoje, decorridos quarenta anos, desafia a nossa compreensão. Uma das coisas mais estranhas e perversas da chamada Zona Euro – e a estranheza é tanto maior quanto maior foi a passividade com que os cidadãos europeus consentiram neste modelo – tem que ver com o modo como a moeda única foi desenhada para retirar soberania aos povos e para reduzir drasticamente a democraticidade nos processos de decisão política. O caso de Portugal fornece um bom exemplo. No início de 2016, os portugueses dispunham de um novo governo liderado pelo primeiro-ministro António Costa, secretário-geral do Partido Socialista (PS) – um dos vários partidos sociais-democratas que então existiam na Europa – que, apesar de ter ficado atrás da coligação dos partidos de direita nas eleições anteriores, conseguiu formar governo com o apoio dos partidos à sua esquerda (o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP), um dos raros partidos dessa área política que continuavam a obter resultados eleitorais significativos). O acordo que o PS firmou com o BE e o PCP para viabilizar a formação do governo visava uma redução gradual das medidas de austeridade que a “troika” havia imposto no seu programa de reconfiguração social, económica e financeira, sob pretexto do empréstimo a que Portugal tinha sido forçado na sequência da mega-crise do sector financeiro norte-americano e europeu em 2008. O PS pretendia reescrever como provisória ou transitória boa parte dessas medidas de austeridade – entre as quais a redução salarial de funcionários públicos e os cortes nas pensões – ao passo que as autoridades de Bruxelas, com a cumplicidade dos partidos de direita que haviam governado Portugal durante a intervenção da “troika”, interpretavam essas medidas como “estruturais” e, portanto, como definitivas e irreversíveis. Dado que o desenho do euro tinha conferido a instâncias não eleitas – nomeadamente a Comissão Europeia – a supervisão e a aprovação prévia dos orçamentos gerais dos Estados da Zona Euro, antes de os mesmos serem sequer submetidos aos parlamentos dos respectivos países, o governo de António Costa foi, em Fevereiro de 2016, confrontado com a recusa liminar da Comissão Europeia em aceitar um orçamento de Estado que procurava inverter, ainda que timidamente, as medidas de empobrecimento estrutural das classes trabalhadoras portuguesas. Convém realçar que esses supervisores eram, invariavelmente, burocratas alheios das realidades e dos problemas específicos de cada povo e de cada Estado, empenhados apenas em aplicar uma cartilha ideológica cujo conteúdo económico-financeiro era sistematicamente invalidado pelas evidências empíricas que a experiência da recessão e da depressão económica não cessava de mostrar.
A ideologia que, por essa altura, comandava a burocracia de Bruxelas entendia que toda a crise do sector financeiro tinha de ser suportada pela depauperação da massa salarial, em consequência da imposição de serem os Estados a pagar os buracos financeiros criados pelos demandos de uma banca inteiramente desregulada. Ora, o mais chocante, para um historiador que hoje se debruce sobre este assunto, era verificar como tudo na zona euro estava blindado para retirar a governos democraticamente eleitos qualquer autonomia na política orçamental. Sem essa autonomia, não só a soberania nacional se via diminuída, quase anulada, mas também a democracia e a própria possibilidade da decisão política enquanto tal, pois tudo isso o Estado português aceitara transferir para Bruxelas. De facto, nenhuma política seria possível, no quadro da Zona Euro, que não se coadunasse com a orientação conservadora, inteiramente favorável aos grandes interesses financeiros, que se apropriara das instâncias de poder na União Europeia, por via da hegemonia dos partidos reunidos debaixo do designado “Partido Popular Europeu”. Tal como sucedera com as veleidades do Syriza, tratava-se agora de esmagar as pretensões, que António Costa começara por proclamar, de conciliar uma política diferente e alternativa com as regras decorrentes do funcionamento da moeda única. O objectivo parecia ser o de humilhar qualquer país ou governo – especialmente na designada “periferia” da União Europeia – que ousasse beliscar o consenso neoliberal que dominava os corredores de Bruxelas. Não admira que, em Portugal e noutros países, se começassem a multiplicar as vozes defensoras do abandono do euro e da ruptura com as suas regras.»